Por que a educação sexual é tão importante para crianças e adolescentes?
Letícia Rodrigues e Luiza Monteiro / Revista Galileu - 14 de maio de 2020

Educação sexual é tão importante que é assunto de uma das séries da Netflix mais assistidas no Brasil e no mundo. Atualmente em sua segunda temporada, Sex Education se passa em uma escola de ensino médio, no interior da Inglaterra. Um aluno chamado Otis Milburn (Asa Butterfield), cuja mãe é uma renomada sexóloga, começa a dar conselhos e informações em torno do tema a outros alunos, transformando a prática em um negócio com a ajuda de sua colega Maeves (Emma Mackey).

O enredo passa por diversos assuntos, como sexo, diversidade, aborto, empoderamento femininobullying, inseguranças, desejos e abuso sexual. Tudo isso com muita naturalidade, respeito e sem clichês. Criado por Laurie Nunn, o programa se tornou um grande sucesso: na terceira semana de janeiro de 2020, foi o mais assistido em todo o mundo na plataforma de streaming.

Mas há quem ainda acredite que falar sobre sexo com jovens é um tabu — ou, pior, errado. O atual presidente da República, Jair Bolsonaro, demonstra pensar dessa forma desde quando era deputado, quando já criticava o livro Aparelho Sexual & Cia - um guia inusitado para crianças descoladas (Companhia das Letras), dizendo que ele fazia parte de um suposto “kit gay” criado por Fernando Haddad quando foi ministro da Educação, de 2005 a 2012, nos governos Lula e Dilma Rousseff. Além de esse projeto nunca ter existido, a obra — originalmente escrita e ilustrada pelos franceses Hélène Bruller e Zep — tem como proposta explicar o sexo de forma didática e divertida para crianças.

Polêmicas envolvendo educação sexual seguem acontecendo no governo de Bolsonaro. Em fevereiro, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), comandado por Damares Alves, lançou uma campanha com o objetivo prevenir a gravidez na adolescência. Como? Com abstinência sexual. No fim de janeiro, a pasta emitiu uma nota técnica que serviu de orientação para a campanha do governo federal. O documento dizia que começar a vida sexual nessa fase leva, entre outras coisas, a “comportamentos antissociais ou delinquentes” e “afastamento dos pais, escola e fé”.

Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica como gravidez na adolescência aquela que acontece em meninas entre 10 e 20 anos. Só no Brasil, a OMS estima que 13 milhões de garotas tenham engravidado com essa idade nas últimas duas décadas. Um dos maiores problemas disso é a evasão escolar e, consequentemente, a falta de oportunidades no mercado de trabalho para elas. No entanto, embora a gestação precoce seja, de fato, um assunto importante em termos de políticas públicas, será que a solução é ensinar aos jovens que sexo é algo ruim e que, portanto, eles devem postergar o início da vida sexual? A resposta de especialistas é clara: não.

E não é para menos que a campanha do governo federal causou tanta polêmica. Entidades do país inteiro vieram a público se posicionar contra a abordagem proposta por Damares. No dia 28 de janeiro, logo após a publicação da nota técnica do MMFDH, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) emitiu um posicionamento enfatizando que o amplo acesso à educação e à informação, junto com serviços de saúde qualificados, são as únicas ferramentas comprovadamente eficazes para evitar que meninas engravidem. “A abstinência somente é saudável se for uma escolha genuína do adolescente e não uma imposição ou a única opção oferecida. É fundamental garantir espaço para a autonomia. Qualquer programa com o objetivo de reduzir a prevalência de gravidez precoce deve promover o acesso à orientação adequada”, diz a médica Luciana Rodrigues Silva, presidente da SBP, no comunicado.

Ao rebater as críticas ao projeto, a ministra Damares disse que a abstinência não seria imposição, e sim uma “aliada” na prevenção de gravidez indesejada. Mas não ajudou muito: esse é um problema de raízes profundas, que não se resolverá com medidas simplistas ou ideológicas. É preciso que diversos setores da sociedade se unam a fim de evitá-lo — o que no Brasil parece estar cada vez mais longe de acontecer.

Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), nosso país ocupa o quarto lugar no ranking mundial de casamentos infantis e o primeiro na América Latina. Por aqui, 26% das garotas se casam antes dos 18 anos e 6% antes dos 15, de acordo com a entidade. Em todo o mundo, a taxa de gravidez precoce é estimada em 46 nascimentos para cada mil meninas entre 15 e 19 anos, enquanto no Brasil esse número é de 68,4 nascimentos. Ficamos atrás apenas de alguns países vizinhos e do continente africano. A Unicef estima que, a cada ano, 15% de todas as gestações da Amética Latina e do Caribe ocorram em adolescentes.

Além da educação

Fazer sexo sem orientação não leva apenas à gravidez precoce. Outro problema é a maior maior exposição a infecções sexualmente transmissíveis (ISTs). Segundo a ONU, uma menina entre 15 e 19 anos é infectada com o vírus HIV, causador da aids, a cada três minutos no mundo. E não são só elas que estão sujeitas a essas doenças: os meninos também. De acordo com o Ministério da Saúde, a taxa de rapazes de 20 a 24 anos com aids cresceu 133% entre 2007 e 2017.

Educar de maneira correta as próximas gerações aumentaria ainda a consciência da importância do consentimento durante a relação sexual. Em 2017 e 2018 foram registrados um total de 127.585 estupros no país, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Desses, 63,8% ocorreram em menores de 14 anos. É claro que, na maioria das vezes, esses crimes não dependem do consentimento da criança — são simplesmente atos violentos e de abuso. Mas educar os pequenos para que eles conheçam sua sexualidade pode ser útil para que eles saibam reconhecer situações desse tipo e procurem ajuda. “Se todo mundo tivesse educação sexual, até os casos de assédio poderiam diminuir porque todos estariam cientes da questão do consentimento; de que ‘não é não’ e ponto”, analisa a pedagoga Adriana de Oliveira, professora da Escola de Aplicação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP).

O papel de cada um

Fica claro, então, que o ideal é, sim, falar sobre sexo com crianças e adolescentes. E esse é um papel que cabe a todos, principalmente a família. Os pais são os primeiros “professores” de educação sexual — afinal, qual criança não faz perguntas curiosas quando está descobrindo sensações, gostos e cheiros de seu corpo? E a dica dos especialistas é simples: responda normalmente. “Educação sexual não tem a ver com pornografia e promiscuidade. Pelo contrário, ela abre nossa mente para conhecermos nosso corpo e nossas limitações”, observa a psicóloga Bruna Zimmermann, especializada em sexualidade humana pela USP.

A psicóloga Mary Neide Figueiró, especialista em educação sexual e professora da Universidade Estadual de Londrina (UEL), no Paraná, alerta que esse tipo de orientação deve acontecer para meninas e meninos — que desde cedo são estimulados a se mostrarem sexualmente ativos, como se desejassem o ato sexual o tempo inteiro. “Educação sexual é importante para que os garotos repensem essa questão, que cada menino tem seu tempo e autonomia, assim como as meninas”, destaca Figueiró. E o mesmo vale para assuntos ligados a gravidez precoce e métodos contraceptivos. “Devemos deixar claro para os garotos que eles são corresponsáveis destas questões.”

É claro que tudo tem seu tempo, mas os pais e responsáveis nunca devem omitir a orientação correta. No caso dos adolescentes, se não se sentirem seguros com a resposta do adulto, é bem provável que eles busquem informações por conta própria — e o risco é que façam isso em fontes não confiáveis. Quando não souber o que falar, diga “Ótima pergunta, mas não sei te responder agora. Vou pesquisar”, como propõe a professora da UEL.

Como nem sempre essa é uma tarefa fácil para pais e mães, a escola também tem seu papel. Até porque é lá onde as crianças se sentem mais à vontade para tirar dúvidas, contar seus medos e desenvolver suas opiniões pessoais. “A educação sexual que eu defendo é emancipatória. Ensinar para que os jovens vivam bem com sua sexualidade, com liberdade e respeito, que sejam críticos e saibam identificar situações para serem capazes de se posicionar”, afirma Figueiró.

Felizmente, isso já acontece em instituições de ensino básico do país. É o caso da Escola de Aplicação, da USP, que tem um projeto desde 1996 para abordar questões sexuais com os alunos. Inicialmente, ele foi chamado de “Orientação Sexual Adolescente”, mas hoje é conhecido como “Gênero e Sexualidade“. Um dos objetivos da iniciativa é falar sobre isso com os jovens de forma educativa, e não de maneira preconceituosa ou discriminatória.

Em seu site, a Escola de Aplicação tem uma página aberta apresentando as principais discussões do projeto. São temas como construção e reconstrução de identidade, desigualdade de gênero e questões relacionadas à sexualidade e à orientação sexual. “Não queremos, em momento nenhum, impor. Nossa única proibição é homofobia, racismo e machismo. Aqui, a gente não tolera isso. Mas as pessoas são diferentes e vão levar vidas diferentes. As decisões são deles [os alunos]”, pontua o professor José Carlos Carreiro Carreiro, um dos responsáveis pelo projeto, à GALILEU.

A professora de teatro da escola, Adriana de Oliveira, ressalta que a instituição também respeita a idade e evolução das crianças, mas desde o ensino fundamental determinados assuntos são tratados. “Com os pequenos, nós falamos que não existem brincadeiras de menino e de menina; todos podem brincar. Falamos sobre as cores, rosa e azul, sobre vestimentas e até corte de cabelo”, detalha. “A gente explica que existem diversos tipos de famílias: não tem só pai, mãe, irmão e acabou. Existem pais héteros, homossexuais, mães solos, pais solos… não deixam de ser família!”

Conforme os alunos vão ficando mais velhos, é hora de abordar temas como infecções sexualmente transmissíveis, prevenção de gravidez e consentimento. “[Falamos] Até mesmo sobre pornografia. A gente não vai proibir e falar ‘Não veja! Tá errado!’, mas vamos falar da indústria, do papel da mulher, dos problemas que envolvem este mercado. O aluno vai saber o que fazer a partir disso”, relata Oliveira. Um ótimo exemplo a ser seguido Brasil afora. Tratar a sexualidade como um tabu e estimular o desconhecimento sobre algo tão natural na vida do ser humano não vai ajudar os adolescentes — ao contrário: promete aprofundar ainda mais todos os problemas ligados à falta de uma educação sexual adequada.


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